A Questão da Heresia, suas relações com a Soberania e a
Paz Civil [1]
Dedico este texto ao Dr. Zenon Lotufo Jr., por sua longanimidade.
"Era o varão Moisés mui manso, mais do que todos os
homens que havia sobre a terra”. (Nm 12.3)
Na Grécia
Antiga, originalmente, o termo heresia
era usado não só em relação à religião, mas também à Filosofia e à Política. O
termo significa, etimologicamente, “tanto uma escolha quanto a coisa
escolhida”. [2]
Nesse aspecto, tanto escolas de Filosofia quanto seitas religiosas são heresias.
Heresia significa também, de acordo com o New
Testament Greek Lexicon,
o “ato de tomar, capturar, por exemplo, tomando de assalto uma cidade”, bem como
se aplica à descrição de “um grupo de homens que
seguem seus próprios princípios”, como membros de uma seita ou de um partido, e
ainda é utilizada em relação às “dissensões decorrentes da diversidade de
opiniões e objetivos”.[3]
Nos
textos do Novo Testamento o termo é utilizado por dez vezes. Seguem abaixo
excertos dos textos em que ela aparece:
At 5.17: A seita
(αἵρεσις) dos saduceus.
At 15.5: Alguns da seita
(αἱρέσεως) dos fariseus.
At 24. 5: Seita
(αἱρέσεως) dos nazarenos.
At 24.14: Segundo o Caminho, a que chamam seita (αἵρεσιν).
At 26:5: Vivi fariseu conforme a seita (αἵρεσιν) mais severa da nossa religião.
At 28:22: A respeito desta seita (αἱρέσεως) sabemos que em todo lugar se fala contra ela.
I Co 11.19: Até mesmo importa que haja heresias (αἱρέσεις) entre vós.
Gl 5:19-20: As obras da carne são conhecidas e são:
discórdias (...), facções (αἱρέσεις).
II Pd 2.1: Haverá entre vós falsos mestres, os quais
introduzirão heresias (αἱρέσεις).
Tt
3.10: Evita o homem faccioso (αἱρετικὸν ἄνθρωπον), depois
de admoestá-lo primeira e segunda vez.
É digno de
nota que, no contexto histórico em que esses textos foram redigidos, o termo
heresia foi aplicado também por Flávio Josefo (37-100) aos Saduceus, Fariseus e Essênios, o que seria feito posteriormente
também por Justino.[4] Mas além do termo ser usado dessa forma, isto
é, em relação à escolha de doutrinas religiosas, ele era usado também em
relação à adesão a partidos, quer na Igreja, quer no Estado”.[5] Isso
demonstra que o sentido original, de escolha, foi mantido por longo tempo.
O significado de escolha para o termo heresia
encontra-se também em Tomás de Aquino, que, citando S. Jerônimo, afirma : “Heresia, vocábulo
grego, significa escolha; quer dizer que cada um escolhe a disciplina que
considera melhor”. E acrescenta que para Agostinho “o herege, pelo interesse de um proveito
temporal e, sobretudo pelo interesse de glória e poder, provoca ou segue opiniões
falsas e novas”. Portanto, acrescenta Tomás, a heresia, além de ser “uma espécie
de soberba”, consiste, do ponto de vista da fé cristã assim como definida pela
Igreja, numa “espécie de infidelidade no homem que, tendo professado a fé em
Cristo, corrompe seus dogmas”.
[6]
Quanto
ao uso do termo seita em
relação às escolas filosóficas, ele é adotado também por Tomás de Aquino na
obra Da Unidade do Intelecto contra os
Averroístas, conforme podemos verificar quando ele afirma:
E dado
que nesta matéria alguns, como eles mesmo dizem, não querem saber das palavras
dos Latinos e dizem-se seguidores das dos peripatéticos, cujos livros sobre
essa matéria nunca viram, à excepção de Aristóteles, o fundador da seita
peripatética (secte peripatetice) , mostraremos em primeiro lugar que a referida
posição vai contras as suas palavras e os seus ensinamentos.[7]
Quanto
a Hobbes, assim define ele a heresia:
A
palavra heresia vem do Grego, e
significa uma escolha de algo, em particular a escolha de uma opinião. Depois
que o estudo Da Filosofia começou na Grécia, e os filósofos, que discordavam
entre si, levantaram muitas indagações, não só sobre os problemas naturais, mas
também sobre os morais e civis; uma vez que cada um escolhia a opinião que lhe
agradasse, cada uma das muitas opiniões era chamada uma heresia; a qual significava não mais do que uma opinião particular,
sem referência à verdade ou à falsidade. Os introdutores dessas heresias foram
principalmente Pitágoras, Platão, Aristóteles, Epicuro, Zenon; homens que, tal
como sustentavam muitos erros, assim também descobriam muitas doutrinas
verdadeiras e úteis.[8]
Hobbes
observa que Igreja Primitiva procurava convencer os discordantes de pontos da
fé cristã pacificamente, e conclui sua obra sobre a heresia com a citação de um
texto bíblico atribuído a Paulo pela tradição cristã, opondo-se, dessa forma,
com base nas Escrituras, à violência da Igreja face às divergências teológicas:
Na maioria das vezes os homens são tão agressivos nas
disputas, quando seu conhecimento ou poder está em questão, que eles nunca
pensam nas leis, mas assim que são ofendidos, logo clamam, crucifica-o; esquecendo-se do que S. Paulo disse (2 Tm. 2, 24-25)
mesmo nos casos daqueles que insistem no erro: é necessário que o servo do Senhor não viva a contender e sim deve ser
brando para com todos, apto para instruir, paciente; disciplinando com mansidão
os que se opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda o arrependimento para
conhecerem a verdade.[9]
Tomás de Aquino, porém, citando o mesmo texto da II Carta a Timóteo
usado por Hobbes em defesa da brandura, afirma: “Se não se toleram aos hereges,
mas se entregam-nos à morte, tira-lhes a oportunidade de se arrependerem. E
então parece que se age contra a ordem do Apóstolo”.[10] E a
seguir complementa essa objeção à tolerância afirmando que o apóstolo Paulo
escreveu a Tito: “Depois de uma
primeira e segunda correção, evita ao herege, sabendo que está pervertido”
(Tt 3,10-11). Mas sua argumentação se torna ainda mais dura, quando afirma, em
relação aos hereges nessa situação:
Por parte deles há realmente pecado, pelo
que merecem não só a separação da Igreja pela excomunhão, mas também a exclusão
do mundo com a morte. Na realidade, é muito mais grave corromper a fé, vida da
alma, do que falsificar a moeda com a qual se sustenta a vida temporal. Por
isso, se aqueles que falsificam moeda, ou outro tipo de malfeitores, justamente
são entregues, sem mais, à morte pelos príncipes seculares, com maior razão os
hereges convictos da heresia poderiam não somente ser excomungados, mas também
entregues com toda justiça à pena de morte. [11]
E o argumento de Tomás de Aquino continua, lembrando que a Igreja tem
misericórdia dos hereges e espera por sua conversão, e que, seguindo o ensino
de Paulo, os condenará apenas se eles persistiram na heresia depois da primeira
e da segunda admoestação. Porém, o argumento parece revestir-se de um caráter
ideológico e autoritário quando Tomás afirma: “A Igreja, já sem esperança de
sua conversão olha pela salvação dos demais, e os separa de si pela sentença de
excomunhão. E vai ainda mais além, entregando-os ao juízo secular para seu
extermínio do mundo com a morte”.[12]
E se, por um lado, chama em seu auxílio textos bíblicos para confirmar
suas teses em muitas ocasiões, ao tratar da heresia interpreta todos os textos
citados apenas para justificar a condenação dos hereges, concluindo por negar o
Sexto Mandamento do Decálogo, o qual, para Hobbes, seria o primordial em
relação à paz civil, pois proíbe o homicídio. Ao contrário disso, Tomás de
Aquino afirma: “Se são extirpados pela morte os hereges, isso não vai contra o
mandamento do Senhor. Esse mandamento se deve entender para o caso de que não
se possa extirpar a cizânia sem o trigo”.
Por outro
lado, se considerarmos verdadeira a definição de heresia de Tomás de Aquino
citada acima, isto é, a de que ela é “uma espécie de infidelidade no homem que,
tendo professado a fé em Cristo, corrompe seus dogmas”, será então impossível
afirmar que todos os homens que discordavam dos dogmas da Igreja eram
heréticos, pois nem todos que o faziam haviam professado a fé cristã, nem
faziam parte de seu rebanho ou estavam sob sua autoridade, a qual a rigor, era
concedida pelo próprio Estado, e não ao contrário. Porém, a Igreja julgava os
considerados heréticos em tribunais independentes do poder civil, obrigava sua
retratação, perseguia-os, excomungava-os ou os levava à morte. Isso levava os
fiéis a crer que, se ele morressem na condição de excomungados, estariam em
situação de danação futura, pois o controle das consciências exercido pela
Igreja levava-os a acreditar que o Papa
poderia condenar ao inferno tanto o corpo quanto a alma, isto é, seu poder era
superior ao do soberano civil, que em caso de perseguição poderia apenas matar
o corpo, e nada decidir quanto ao destino da alma. Sendo assim, para a
comunidade cristã controlada pelo Papa, o poder de excomunhão amedrontava mais
do que o poder civil.
Porém,
para Hobbes, a obediência à Igreja poderia provocar a desobediência ao soberano
civil e levar a sociedade à guerra civil, além da Igreja, de acordo com Hobbes,
ensinar muitas coisas fabulosas, permanecendo ainda nas trevas, o que ele
afirma no Cap. XLIV do Leviatã,
prenunciando uma Filosofia das Luzes, do qual destacamos breves afirmações, as
quais demonstram, também, que Hobbes não lia a Bíblia, nem a citava,
necessariamente, por mera retórica.
Inicialmente,
vejamos como Hobbes define o reino das trevas a partir das Escrituras nesse
capítulo:
O reino das trevas nada mais é do que uma confederação
de impostores, que para obterem o domínio sobre os homens neste mundo presente,
tentam por meio de escuras e errôneas doutrinas, extinguir neles a luz, quer da
natureza, quer do Evangelho, e deste modo desprepará-los para a vinda do reino
de Deus.[13]
Está
implícito nessa afirmação que ele se refere aos mestres da Igreja católica, o
que se torna mais evidente a seguir, quando afirma:
A
parte mais escura do reino de Satanás é aquela que se encontra fora da Igreja
de Deus, isto é, entre aqueles que não acreditam em Jesus Cristo, mas não
podemos dizer que a Igreja goza portanto (como a terra de Goshen) de toda a luz
necessária para a realização da obra que Deus nos destinou.[14]
E aponta no trecho a seguir quatro tipos de erros perpetrados pela
Igreja, a qual ele parece ironicamente identificar com o próprio Satanás, ao
usar o termo “inimigo”:
O inimigo tem estado aqui na noite de nossa natural
ignorância, e espalhou as taras dos erros espirituais; e isso primeiro abusando
e apagando as luzes das Escrituras, pois erramos quando não conhecemos as
Escrituras. Em segundo lugar, introduzindo a demonologia dos poetas gentios...
Em terceiro lugar, misturando com as Escrituras diversos vestígios da religião,
e muito da vã e errônea filosofia dos gregos, especialmente de Aristóteles. Em
quarto lugar, misturando com ambas estas, falsas ou incertas tradições, e uma
história nebulosa ou incerta. E deste modo erramos, dando atenção aos espíritos
sedutores, e à demonologia daqueles que dizem mentiras hipocritamente (ou, como
está no original, 1 Tim 4,1s, daqueles que fazem o papel de mentirosos), com
uma consciência endurecida, isto é, contrária a seu próprio conhecimento.[15]
E talvez para nossa surpresa, não é
um teólogo ou bispo quem está citando as Escrituras para combater as trevas da
ignorância, mas sim um filósofo acusado de ateísmo. Seria uma voz clamando num
deserto, o deserto das consciências alienadas pelo medo e pelas trevas
impingidas pelos representantes de Cristo, aquele que disse que é a luz do
mundo e que quem o segue não andará em trevas? [16].
Falemos agora da autoridade da Igreja sobre os seus membros. Em relação
a isso, Hobbes começa por definir a Igreja como submissa ao poder civil,
afirmando que “a Igreja é uma companhia de pessoas que professam a religião
cristã, unidas na pessoa de um soberano, a cuja ordem devem reunir-se, e sem
cuja autorização não devem reunir-se”. [17] Sendo assim, a Igreja é reconhecida como
pessoa apenas pelo soberano e é a partir de tal reconhecimento que “nela se
pode admitir o poder de querer, de pronunciar, de ordenar, de ser obedecida, de
fazer leis, ou de praticar qualquer espécie de ação”. É apenas nesse sentido,
diz Hobbes, que a Igreja pode considerar a alguém “como um gentio ou um
publicano”, como diz o Evangelho.[18]
O objetivo de Hobbes ao discutir as
opiniões dos teólogos não era apenas opor-se às doutrinas sem fundamento da
Igreja, mas sim tratar da obediência e a paz civil, como ele diz no Prefácio da
obra Do Cidadão, onde, ao expor as regras a seguir em seu discurso, a quarta é:
“Não discutir de forma alguma as teses dos teólogos, exceto aquelas que despem
os súditos de sua obediência e assim abalam os alicerces do governo civil”.[19]
Para
ele, portanto, a heresia dizia respeito às opiniões e crenças contrárias à paz
civil, e a Igreja, dessa forma, seria herética do ponto de vista civil. Para
ele, as opiniões, mesmo que verdadeiras, estavam sob o controle do soberano,
pois seu objetivo é a paz civil. E assim, quem determina o que é verdadeiro é o
soberano, não o clero, o qual lhe é submisso, conforme já examinamos em outra
parte.
Hobbes
compara a heresia às rebeliões diante do poder civil, conforme se pode
verificar em sua afirmação:
Podemos
dizer que a heresia tem a mesma relação com o poder espiritual que a rebelião tem com o poder
temporal, e é suscetível de ser perseguida por aquele que quer manter um poder
espiritual e uma dominação sobre a consciência dos homens.[20]
Hobbes
observa que esse controle exercido pela Igreja sobre a consciência dos cidadãos
era tal que esta pretendia arbitrar sobre questões controversas não só na
teologia, mas também no direito e na política, chegando mesmo a pretender
estabelecer os cânones do pensamento correto. Foi por isso que Hobbes precisou
afirmar, dirigindo-se claramente à Igreja, que, sim, “é necessário que haja
alguém para julgar o raciocínio”, porém, observa que “não há regras dadas por
Cristo para este propósito – ele não veio ao mundo para ensinar lógica”. [21]
Donde se
segue que é o soberano civil quem tem o poder de decidir quem será o juiz das
controvérsias e mesmo quem poderá por fim a elas, visando o bem público e a paz
civil. A definição do que é heresia, portanto, cabe também ao detentor da
soberania, conforme diz Hobbes:
Não há qualquer juiz da heresia entre os súditos a não
ser seu próprio soberano
civil. Pois a heresia não é mais do que uma opinião pessoal, obstinadamente
mantida, contrária à opinião que a pessoa pública (quer dizer, o representante
do Estado) ordenou que fosse ensinada. Pelo que fica manifesto que uma opinião
publicamente escolhida para ser ensinada não pode ser heresia, nem o soberano
príncipe que a autorizou pode ser um herege. Pois os hereges são apenas os
indivíduos particulares que teimosamente defendem uma doutrina proibida por
seus legítimos soberanos.[22]
Isto é, como são os
legítimos soberanos quem autorizam o culto público e as doutrinas a serem
ensinadas, são eles quem decide o que é heresia ou verdade.
A
Igreja também tinha a presunção de julgar se as ações dos homens eram justas ou
injustas, usurpando o poder de julgar, que pertence ao soberano civil. Sobre
essa invasão da esfera civil pelo Papado, Hobbes afirma:
Este poder de ministrar os
sujeitos da obediência, como aquele de ser juiz em matéria de costumes e doutrina, é a soberania
mais absoluta que possa existir; conseqüentemente, haveria dois reinos em uma
só e mesma nação, e nenhum homem seria
capaz de saber a qual de seus mestres deveria
obedecer. [23]
Isso
também significaria, de fato, uma inversão, pois a instituição eclesiástica só
tem legitimidade se for reconhecida pelo poder civil.
Dessa
forma, o Estado, um “deus mortal”, apesar de seus limites e de sua
possibilidade de perecer, é dele que emana a autoridade religiosa, do
contrário, a rigor, voltaríamos à guerra de todos contra todos e o que é pior,
causada em grande parte pela instituição religiosa.
As
definições de Hobbes sobre o Reino de Deus, o significado de Igreja nas
Escrituras e as trevas espirituais são feitas com vistas a estabelecer, mesmo
antes de Kant, uma religião dentro dos limites da simples razão, admitindo
partes da Escritura que, de acordo com Hobbes, são condizentes com a luz
natural da razão, que é a revelação natural de Deus. Assim, é uma religião com
mais autonomia, livre do modo de pensar oficial da instituição eclesiástica,
quer protestante, quer católica. Ao mesmo tempo, porém, é uma religião cujo
sumo pontífice é o soberano civil, cujo principal objetivo, para a sociedade
que lhe obedece, á a preservação da paz, condição sine qua non da obediência civil.
No
Cap. XLIV do Leviatã, já citado
acima, ao tratar dos abusos da Igreja em relação às Escrituras Hobbes afirma
que o principal deles foi é “distorcê-las a fim de provar que o Reino de Deus,
tantas vezes mencionado nas Escrituras, é a atual Igreja”.[24] Mas já
no próprio Cap. XV da mesma obra, intitulado De outras leis de natureza, Hobbes afirma que a garantia de uma
felicidade eterna nos céus “só se pode imaginar de uma maneira: não rompendo os
pactos, mas cumprindo-os”.[25] Certamente ele não se refere aos pactos feitos com Deus,
antes, subordina estes à autoridade civil e, por consequência, submete a
própria fé religiosa, qualquer que seja, ao Reino Civil, quer dizer, ao reino
dos homens.
É
digno de observação que Hobbes, ao insistir em submeter todo o poder ao
soberano civil, inclusive a definição sobre o que é canônico, quem pode
interpretar os textos tidos como tais, e por controlar as doutrinas e o ensino
de qualquer ideia visando a paz civil, mesmo que alguma doutrina proibida fosse
verdadeira, definiria, por consequência, o próprio Reino de Deus. E ao fazer isso, criticando as atitudes
inquisitoriais da Igreja, estabelece uma nova forma de inquisição e de
controle. Então se poderia concluir que esse suposto deus, o Estado, por ser
mortal, precisa controlar as consciências dos súditos, e a própria verdade,
tendo, portanto, um papel inquisitorial, mas legítimo, de acordo com a doutrina
da soberania.
A Igreja, de
fato, como instituição social, recebe seu reconhecimento como pessoa do poder
civil, nada mais justo. Porém, sua vocação não é civil. Mas sua autonomia não
lhe permite usurpar o poder civil e pretender que este receba dela a sua
legitimidade. Assim, como afirma Hobbes, um rei poderá fazer uma confissão de
fé ou ouvir um profeta, apóstolo, bispo ou mesmo o Sumo Pontífice, do ponto de
vista moral, mas não lhe será submisso do ponto de vista civil.
E para
surpresa maior ainda da Igreja, que se fortificava com as Escrituras, Hobbes
apresenta um resumo das leis de natureza que é tirado do Evangelho, pois ao
dizer que “as leis de natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia, a
piedade), ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam” ([26]),
está lembrando a seus leitores uma afirmação do Evangelho que todo religioso
sabe, mesmo que seja só por ouvir, isto é, o que Lucas escreveu: “Como quereis
que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles”. [27]
Se
por esse princípio do amor ao próximo se alcança a paz civil, pelo outro, isto
é, o de amar a Deus de todo o coração, de todas as forças e de todo o
entendimento, se alcança a tolerância religiosa, e para isso Hobbes deu grande
contribuição.
De
acordo com Hobbes, “o papado é um dom do imperador” e não ao contrário. Desde a
coroação de Carlos Magno, afirma Hobbes: “Todos ou a maioria dos reis cristãos
colocam nos seus títulos Dei Gratia (ou
seja, pela Graça de Deus); e seus sucessores recebem ainda a coroa e o cetro das mãos de um bispo”. [28] Porém, Hobbes observa que apesar de ser um
hábito excelente reconhecer “por qual dom eles reinam, não podemos inferir
desse costume que eles receberam o
reino”.[29] Pois,
argumenta ele no Leviatã, Cap. XXIII:
Só o monarca, ou a assembleia soberana, possui abaixo
de Deus autoridade para ensinar e instruir o povo, e nenhum homem além do
soberano recebe seu poder Dei grada
simplesmente, isto é, de um favor que vem apenas de Deus. Todos os outros
recebem seus poderes do favor e providência
de Deus e de seus soberanos, e assim numa monarquia se diz Dei gratia & Regis, ou Dei providentia & voluntate Regis.[30]
E no Cap. XLII da mesma obra ele dirá, de forma abrangente e
conclusiva:
Todos os pastores, com exceção do supremo pastor,
desempenham suas funções pelo direito, isto é, pela autoridade do soberano
civil, isto é, jure civili. Mas o
rei, ou qualquer outro soberano, desempenha seu cargo de supremo pastor pela
imediata autoridade de Deus, quer dizer, por direito de Deus, ou jure divino. Assim, só os reis podem
incluir em seus títulos (como marca de sua submissão apenas a Deus) Dei gratia Rex, etc. Os bispos devem
dizer, no início de seus mandatos, pelo favor da majestade do rei, bispo de tal
ou tal diocese, ou então, como ministros civis, em nome de Sua Majestade.
Porque ao dizer divina providentia,
que é o mesmo que Dei gratia, embora
disfarçadamente, eles estão negando receber do Estado civil sua autoridade...
contrariamente à unidade e defesa do Estado”.[31]
Assim,
resta suficientemente demonstrado, para Hobbes, que o poder legitimar a
religião, de definir o que é canônico, quem exerce o ensino da religião, e quem
define o que é heresia, é o soberano civil, que foi quem, afinal, autorizou a
religião cristã no Império romano, pois esta foi autorizada por Constantino.[32] E,
afirma Hobbes:
Do mesmo modo que Constantino também todos os outros
imperadores cristãos eram por direito os bispos supremos do Império Romano...
não de toda a cristandade, pois, os outros soberanos cristãos tinham o mesmo
direito em seus diversos territórios, dado tratar-se de um cargo essencialmente
inerente à sua soberania.[33]
A própria definição de heresia, para Hobbes,
como verificamos, cabe ao Estado, o que se torna evidente em sua afirmação:
O direito de julgar quais são as doutrinas favoráveis à paz, que devem ser ensinadas aos súditos, se
encontra em todos os Estados inseparavelmente dependente do poder civil
soberano, quer ele pertença a um homem ou a uma assembleia.[34]
Nesse sentido, é-lhe forçoso afirmar que a conversão
dos reis pagãos não implicava na perda de sua soberania e de sua submissão à
Igreja, afirmando:
O direito dos reis pagãos não pode ser considerado anulado por sua
conversão à fé de Cristo, o qual jamais determinou que os reis, devido a nele
acreditarem, fossem desapossados, isto é, sujeitos a alguém que não ele mesmo,
ou então (o que é a mesma coisa) fossem privados do poder necessário para a
preservação da paz entre seus súditos e para sua defesa contra os inimigos
estrangeiros. Portanto, os reis cristãos continuam sendo os supremos pastores
de seu povo. [35]
Deve-se observar que ao tratar do
problema da heresia o filósofo faz importante lembrança à própria Igreja, a de
que o Quarto Concílio de Latrão estabeleceu que se um rei tivesse sido
admoestado pelo Papa, mas não expurgasse os hereges de seu reino, e se depois disso
não prestasse satisfação ao Papa no prazo de um ano, os súditos ficariam “dispensados
de obedecer-lhe”. [36]
Ao que Hobbes acrescenta, citando em
sua argumentação uma afirmação dos Evangelhos, o que reforça a tese da unidade da
soberania (parte grifada é uma citação de Mt 6.24, que diz: “Ninguém pode
servir a dois senhores”):
Penso haver poucos
príncipes que não considerem isto injusto e inconveniente; mas gostaria que
todos eles decidissem se querem ser reis ou súditos. Os homens não podem servir a dois senhores. Devem, portanto, os
príncipes aliviá-los, seja tomando completamente em suas mãos as rédeas do
governo, seja deixando-as inteiramente nas mãos do Papa; a fim de que os que
desejam ser obedientes sejam protegidos em sua obediência. [37]
E Hobbes acrescenta ainda, em relação à essência da
soberania civil:
Quando dizemos que um
poder está sujeito a outro poder, ou isso significa que quem tem um deles está
sujeito a quem tem o outro, ou então que um dos poderes está para o outro como
um meio está para um fim. Porque é impossível entender que um poder tenha poder
sobre outro poder, ou que um poder possa ter direito de mando sobre outro... Se
um rei tiver o poder civil, e o Papa, o poder espiritual, daí não se segue “que
o rei seja obrigado a obedecer ao Papa.[38]
Já no célebre Cap.
XXIX do Leviatã, intitulado “Das coisas que enfraquecem ou levam à dissolução de um Estado”, Hobbes
declara, citando indiretamente o Evangelho (o que pode ser notado na frase em
itálico):
Assim como houve
doutores que sustentaram que há três almas no homem, também há aqueles que
pensam poder haver mais de uma alma (isto é, mais de um soberano) num Estado e
levantam a supremacia contra a soberania, os cânones, contra as leis, e a
autoridade espiritual contra a autoridade civil... Ora, dado ser manifesto que
o poder civil e o poder do Estado são uma e a mesma coisa, e que a supremacia e
o poder e fazer cânones e conceder faculdades implica um Estado, segue-se que
onde um é soberano e o outro é supremo, onde um pode fazer leis e o outro pode
fazer cânones, tem de haver dois Estados para os mesmos súditos; o que é um reino dividido e que não pode
durar... Ora, se houver apenas um reino, ou o civil, que é o poder do
Estado, tem de estar subordinado ao espiritual, e então não há nenhuma
soberania exceto a espiritual; ou o espiritual tem de estar subordinado ao temporal
e então não existe outra supremacia senão a temporal.[39]
Assim, o
mesmo Hobbes que, por um lado, afirma a soberania de Deus sobre todos os
potentados, por outro lado, visando à paz civil, coloca os deveres do cidadão
do reino mortal, isto é, do reino civil, em primeiro lugar, e os deveres para
com o Deus Imortal em segundo lugar.
E assim, torna-se
presente no fundo dessa argumentação a superação do estado de natureza e a
obediência ao Poder Comum, capaz de colocar a todos em respeito e de garantir a
vida e a paz entre os homens.
Dessa forma, o Estado também é sagrado, pois
preserva o principal bem que o homem tem, que é sua própria vida, assim como as
condições de gozá-la em paz, bem ao qual se chegou através da razão natural.
Hobbes, ao discutir sobre
o Reino de Deus, procurava definir, na Commonwealth, quem daria as
ordens, quer por escrito, quer oralmente, as quais deveriam ser obedecidas por
todos que pretendiam ser protegidos pelas leis.
Como a paz civil é o maior bem, e como as questões relativas ao Reino de
Deus exercem grande influência sobre a sociedade, Hobbes reafirmará no Cap. XLV
do Leviatã a tese da supremacia do poder civil sobre a religião,
afirmando: “As questões de doutrina relativas ao Reino de Deus têm tamanha
influência sobre o reino dos homens que só podem ser decididas por quem abaixo
de Deus tem o poder soberano”.[40]
E isso, obviamente,
era uma oposição ao poder eclesiástico, como se vê no final da Parte I do Leviatã
e no cap. XXXIII, onde ele diz:
A questão da autoridade das
Escrituras fica reduzida a isto: se os reis cristãos, e as assembleias
soberanas das repúblicas cristãs, são absolutos no seu próprio território,
imediatamente abaixo de Deus, ou se estão sujeitas a um vigário de Cristo,
constituído sobre a Igreja Universal, podendo ser julgados, depostos ou mortos,
consoante ele achar conveniente ou necessário para o bem comum.[41]
A esse argumento
Hobbes acrescenta que “quem tiver o poder de tornar lei qualquer escrito terá
também o poder de aprovar ou desaprovar sua interpretação”.[42]
Conforme já dissemos, logicamente ele
conclui que, como a autoridade civil é quem autoriza o que é canônico e o que
se pode ensinar, a instituição eclesiástica deve-lhe obediência, deixando o
líder da Igreja de ser, de fato, o pontifex maximus, pois nem em
religião ele será a autoridade máxima, pois a tolerância religiosa se aproxima.
A instituição
eclesiástica, bem como toda instituição, só existirá efetivamente se for
reconhecida pelo Estado, que é quem lhe autoriza e garante a própria existência
civil. E Hobbes reafirma de forma recorrente essa tese em sua obra: seria
absurdo e contraditório que o Estado desse a si mesmo um soberano, tese a qual,
porém, era comum nos discursos da Filosofia das Escolas.
Bertrand
Russell afirma que “Hobbes era um ferrenho adepto de Erasto e, portanto,
sustentava que a Igreja deve ser uma instituição nacional, sujeita às
autoridades civis”. [43] Logo, a
Igreja não podia desempenhar funções que pertenciam ao poder civil, por
exemplo, punir a alguém em razão de sua discordância de um princípio de fé com
um tipo de punição que caberia, por direito, ao soberano civil, como atentar
contra sua integridade física, privá-lo da propriedade, da liberdade ou
matá-lo. Erastus entendia que a Igreja não tinha o direito, também, de negar a
comunhão aos discordantes de seus dogmas e de suas decisões conciliares.
De acordo com
o historiador Kenneth Scott Latourette, no século XVI, “onde os governantes
eram professadamente cristãos, fossem protestantes, católicos romanos ou ortodoxos,
eles eram dominantes”. Nos países luteranos e na Inglaterra, isso foi apoiado
por muitos dirigentes da Igreja que se baseavam no princípio chamado “erastianismo”,
que afirmava a supremacia do Estado em matéria eclesiástica. [44] Em
lugar de concordar com as punições aplicadas pelas igrejas aos seus membros,
Erastus (1524-1583) sustentava que “os pecados dos cristãos deveriam ser
castigados pelas autoridades civis e não pelas religiosas”.[45]
Latourette afirma que de acordo com essa doutrina, a Igreja tem uma esfera de
ação distinta em relação ao Estado, mas “deve ser controlada por ele”.[46]
Thomas Lieber,
que ficou mais conhecido como Thomas Erastus, nasceu em Baden, estudou
Filosofia, Teologia e Medicina e foi professor de Medicina em Heidelberg.
Naquela época a cidade era um importante centro de discussão teológica e uma
cidade que servia de refúgio para religiosos de várias crenças. Porém, cada
novo governante impunha sua visão religiosa sobre os cidadãos.[47]
Em Heildelberg
Erastus se opôs ao inglês George Wither, “porta-voz dos calvinistas, que
queriam impor seu Credo no Palatinado, independente da autoridade civil”.[48] Suas
doutrinas teológicas e civis foram expostas na obra Explicatio gravissimmae quaestionis, publicada postumamente em Londres,
em 1589. A obra “se situa na perspectiva de um Estado confessional e reservava
ao poder civil o direito e o dever de intervir em todos os domínios religiosos,
e compreende dentro de suas sanções a excomunhão”.[49] Segundo
seu pensamento, “reconhece-se aos representantes do Estado, qualquer que seja a
religião que eles professem individualmente, o direito de legiferar em matéria religiosa
sobre a Igreja estabelecida”.[50]
Em virtude
desse princípio, na Inglaterra, inicialmente sem uma definição litúrgica após a
estatização da Igreja por Henrique VIII, foi publicado o Livro de Oração Comum sob Eduardo VI em 1549, normatizando a
liturgia, pois o culto devia ser submisso ao Estado, como defendia Hobbes nas
obras Do Cidadão e Leviatã,
pois para o filósofo inglês é esse, afinal, o significado da expressão “culto
público”: um culto permitido pelo soberano civil. As ideias de Erastus se expandiram na
Inglaterra e posteriormente influenciaram o pensamento de Hobbes.
Teologicamente,
Erastus era seguidor de Ulrich Zwingli e nas conferências teológicas de
Heildelberg (1560) e Maulbronn (1564) ele opôs à doutrina luterana da Ceia a
interpretação de Zwingli, tendo adquirido reconhecimento e boa reputação no
trato de questões teológicas. Sua obra citada acima, Explicatio gravissimmae quaestionis, originalmente circulou como
manuscrito, contendo 100 teses, as quais depois foram reduzidas a 75.
Théodore de
Bèze, primeiro reitor da academia fundada por Calvino em Genebra em 1559, vindo
depois a tornar-se seu sucessor, escreveu uma réplica a Erastus, a qual que foi
publicada em 1590. Erastus foi excomungado em 1570 por um concílio
presbiteriano sob a acusação de anti-trinitariasmo. Porém, foi restaurado em
1576 e a partir de 1580 ele foi para Basel, onde lecionou Medicina e Ética.
Erastus se
opunha à severa disciplina do Calvinismo, afirmando na Explicatio que nas Escrituras não se garante que a Igreja tenha a
autoridade para punir seus ofensores. Antes, ele entende que os atos de
disciplina pertencem ao magistrado civil. A partir dessa ideia foi que se
desenvolveu o conceito de “erastianismo”, significando a subordinação da Igreja
ao Estado, mas essa doutrina, tal como se desenvolveu depois dele, não
significa, necessariamente, que ela a tenha sistematizado ou seja seu fundador,
como ocorre amiúde na História das doutrinas, das ideias e das práticas humanas.
As ideias
sobre a separação entre a Igreja e o Estado já estavam presentes também no
pensamento de Marsílio de Pádua e William of Ockham.
Bertrand
Russel afirma que “alguns séculos antes que irrompesse a tempestade da Reforma,
uma mudança gradual no clima intelectual abalara as antigas ideias relativas à
supremacia da Igreja”. Observa o pensador que essa “revolta contra uma
autoridade substituta entre Deus e o homem” avançou não só por si mesma,
mas sim devido aos abusos da Igreja que
atraíram “a atenção dos homens para a disparidade entre o que pregava e o que
praticava”. Para Russell, o fato do clero ser um grande proprietário “talvez
não fosse censurável, a não ser porque seria difícil conciliar os ensinamentos
de Jesus com o comportamento mundano de seus ministros”.[51]
Russell afirma
que, em relação ao conhecimento teológico, para Ockham:
Não é possível
conhecer a Deus através da experiência sensorial e nada pode ser estabelecido a
seu respeito por meio do nosso aparato racional. Acreditar em Deus e nos seus
vários atributos depende da fé, e o mesmo ocorre com todo o sistema de dogmas
acerca da Trindade, imortalidade da alma, criação e coisas semelhantes. Neste
sentido, Ockham pode ser descrito como um cético, mas seria errôneo
considerá-lo como um descrente. Ao limitar o alcance da razão e libertar a
lógica dos obstáculos metafísicos e teológicos, ele fez muito para promover
renovados esforços de investigação científica.[52]
E em relação às doutrinas religiosas,
prossegue Russell: “Ockham já sustentara que o cristianismo podia funcionar sem
a supremacia desenfreada do Bispo de Roma”.[53]
Sobre a
controvérsia entre a soberania civil e o Papado, Ockham afirmou a independência
do primeiro em relação à Sé Romana. A eleição imperial, para ele, não requeria
a confirmação pontifícia. Frederick Copleston afirma que “Ockham defendeu
firmemente a independência do Estado em relação à Igreja, e atacou fortemente o
‘absolutismo’ papal dentro da própria Igreja”.[54]
Mantendo a
distinção entre o poder espiritual e o temporal, Ockham “insistiu em que a
cabeça suprema na esfera espiritual, a saber, o Papa, não é a fonte do poder e
da autoridade imperial, e também que a confirmação pontifícia não é necessária
para dar validade a uma eleição imperial”, afirmando também que “se o Papa se
atribui poder a si mesmo, ou trata de assumir poder na esfera temporal, está
invadindo um território sobre o qual não tem jurisdição alguma”. [55]
Por fim, uma
tese digna de nota de Ockham é a de que “a autoridade do imperador não deriva
do Papa, senão de sua eleição, na qual os eleitores ocupam o lugar do povo”.[56]
Não
localizamos, que na obra Do Cidadão,
quer no Leviatã, qualquer referência
direta, isto é, textual, de Hobbes a Ockham, mas de acordo com o Prof. Anthony
Kenny, da Universidade de Oxford, o pensamento de William de
Ockham, além de ser um marco importante na Filosofia da Linguagem e na
Metafísica, é também significativo na História da Filosofia em relação às
ideias políticas, as quais exerceram influência tanto sobre Thomas Hobbes
quanto, anteriormente, sobre Martinho Lutero. [57]
Quanto ao
pensamento de Marsílio de Pádua, Russel afirma:
Marsílio de Pádua (1270-1342), amigo e companheiro de
exílio de Ockham, opunha-se igualmente ao Papa e formulou ideias bastante
modernas sobre a organização e a competência dos poderes seculares e
espirituais. A soberania definitiva reside na maioria do povo em ambos os
casos. Os Concílios Gerais devem ser constituídos por eleição popular. Só um
Concílio assim teria o direito de excomungar, e ainda assim não sem a sanção
secular. Os concílios deveriam se limitar a estabelecer as normas da ortodoxia,
mas a Igreja não deve se imiscuir nos assuntos do Estado.[58]
E François Châtelet afirma, em relação à
contribuição de Marsílio de Pádua para a teoria moderna da soberania:
O extraordinário mérito de Marsílio de Pádua consiste
em definir o que irá ser o Estado laico no sentido do cristianismo. Ele
considera a sociedade como um todo
que, enquanto tal, é anterior e transcendente em relação a suas partes: ela
poder ser apenas a universitas civium
– a universalidade dos cidadãos (ou sua melhor parte) – que tem como função
legislar, editar as leis necessárias à manutenção do todo; ela designa em seu
seio um pars principans – um Príncipe
(individual ou coletivo) – que tem a seu encargo a coerção e a gestão.
Lançou-se assim o dispositivo teórico que permitirá o advento do conceito
político de soberania, ou seja, o conceito moderno do Estado.[59]
Quanto
à autoridade papal e às relações entre a Igreja e o poder civil no pensamento
de Marsílio, complementa Châtelet:
Paralelamente a essa defesa da autonomia e da unidade
radical da sociedade política, Marsílio recusa a autoridade papal: a Igreja não
é mais do que um nome para designar o conjunto de crentes; não poderia ter um
chefe; e os padres, encarregados de preparar os cidadãos para a salvação,
dependem do Príncipe, tanto quanto os demais cidadãos; e isso nos quadros da
lei.[60]
No
pensamento medieval se desenvolveram outras teses libertadoras que exerceram
influência no pensamento político moderno, além das já mencionadas. Os limites
do poder papal estão presentes também em outros pensadores da Idade Média, dos
quais faremos também breves menções, devido à sua importância para um diálogo
com o antipapismo de Hobbes, pois examiná-los exaustivamente não se constitui
no objeto de estudo e no escopo deste trabalho.
O
próprio Tomás de Aquino afirmou (II Sent.,
44) que “nas matérias que se referem ao bem da cidade (bonum civile), cumpre obedecer antes ao poder secular do que ao
poder espiritual, segundo esta palavra de São Mateus (22,21): Dai a César o que
é de César”.[61]
Porém,
um pensador radical em relação ao poder papal foi João de Paris (Jean Quidort),
que na obra De potestate regia et papali afirmou
que “o Concílio tem o direito de depor o Papa em caso de heresia ou escândalo,
porque a ‘vontade do povo’, que se expressa então pelo concílio ou pelos
cardeais, é mais forte do que a do Papa”.[62]
Outro
pensador de peso na análise dessa questão é Dante, que afirmava que o homem tem
duas beatitudes: uma, a “felicidade acessível pela vida ativa no âmbito
político da cidade”, outra, a “beatitude contemplativa da vida eterna”, as
quais são alcançadas por meios distintos. Alcança-se a primeira através da
Filosofia, e a segunda pelos “ensinamentos espirituais que transcendem a razão
humana”, desde que se regulem as ações morais pelas virtudes teológicas da fé,
da esperança e da caridade.[63]
Há, então,
dois soberanos: o Pontífice e o Imperador, e “esses dois poderes são últimos e
supremos”, cada um em sua ordem. Não se encima um ao outro, mas Deus está acima
de ambos, e ele “é o único a escolher o Imperador, o único a confirmá-lo e o
único que pode julgá-lo”, e “é de Deus, não do Papa, que o Imperador recebe
diretamente sua autoridade”.[64]
Isso significa,
conclui Gilson, que A Monarquia de
Dante “anunciava o acordo, sob a autoridade suprema de Deus, de dois
universalismos justapostos”, um no universo temporal, o outro no espiritual.[65] Essa forma de raciocinar, portanto,
conclui Gilson, demonstra que Dante quis libertar o monarca universal da
Igreja, à qual, porém, muitos pensadores, antes e depois dele, quiseram
mantê-lo submisso.
Os limites do
poder eclesiástico são afirmados também, com clareza, num documento histórico
da Reforma, a Confissão de Augsburgo,
escrita em 1530 por Melanchton, da qual Lutero disse: “Eu nada sei como melhorá-la ou modificá-la”.[66]
O Artigo 28
dessa Confissão afirma a diferença
entre o poder eclesiástico e o poder político, denunciando o fato de que os
pontífices, além de terem onerado as consciências e promovido violentas
excomunhões, “também se lançaram à empresa de transferir reinos do mundo e
tirar o poder dos imperadores”. [67]
Porém, afirma a Confissão, “por causa do mandamento de Deus, ambos (o poder
eclesiástico e o poder político) devem ser escrupulosamente venerados e
honrados como os maiores benefícios de Deus na terra”.[68]
A afirmação da
separação entre ambos na visão de mundo luterana se torna mais evidente na
citação que fazemos abaixo, cujos conceitos, apesar das diferentes formas de
expressá-los através dos tempos, já estavam presentes no Novo Testamento e foram
repetidos na Idade Média por vários autores, e no século XVI tanto por Lutero
quanto por João Calvino, e por Hobbes, posteriormente:
“O magistrado defende não as mentes, porém os corpos
e as coisas corpóreas contra manifestas injustiças, e reprime os homens com a
espada e penas temporais... Não se devem confundir, por isso, o poder
eclesiástico e o civil. O poder eclesiástico tem sua própria incumbência:
ensinar o evangelho e administrar os sacramentos. Não deve invadir ofício
alheio, transferir reinos do mundo, ab-rogar as leis dos magistrados, abolir a
obediência legítima, impedir julgamentos a respeito de quaisquer ordenações ou
contratos civis, prescrever leis aos magistrados sobre a forma de constituir a
coisa pública”.[69]
É impossível afirmar com
certeza o que Hobbes conhecia dos autores citados, ou se ele conhecia a
Confissão de Augsburgo, mas por sua erudição é possível que ele conhecesse tais
conceitos. Quanto a William of Ockham, Anthony Kenny diz: “I am not
aware of any evidence that Hobbes read Ockham's political writings, and I think
it very unlikely that he did so”. (Email
ao autor: 13-07-2012).
De todo
modo, Hobbes afirma, tanto pela razão natural quanto pelas Escrituras, como diz
o Evangelho, que: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de
aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro”
(Mt 6.24). Hobbes cita esse texto bíblico ao comentar o Cap. 13 da Carta
aos Romanos, onde Paulo diz que “não há poder senão o de Deus”, observando que “se
o apóstolo tivesse querido dizer que devemos ser súditos tanto de nossos
próprios príncipes como do Papa, ternos-ia ensinado uma doutrina que o próprio
Cristo nos disse ser impossível, a saber, servir
a dois Senhores”. (Cf. Cap. XLII do Leviatã,
op. cit., p. 329).
[1] Este é o
IX Capítulo e minha Tese de Doutoramento em Filosofia na Unicamp e tem o
objetivo de esclarecer a necessidade da tolerância religiosa e da obediência
civil a apenas um Poder. Inicialmente pensei em escrever apenas um breve trecho
sobre a Heresia, mas o problema exigiu uma pesquisa mais ampla, e assim o
resultado foi este texto, o qual compartilho com os amigos.
[4] Idem.
[5]
Idem.
[6] Tomás de
Aquino. Suma Teológica, II-II, Q. 11,
in: http://hjg.com.ar/sumat/c/c11.html
(06/07/12).
[7] Idem. Da unidade do intelecto contra os averroístas.
Lisboa: Ed. 70, 1999, p. 47.
[8] Hobbes. Historical narration concerning heresy, and the
punishment thereof. Vol. IV da okra: The English Works of Thomas
Hobbes of Malmesbury. Molesworth Ed. (London: 1839-1845), reimpressa
em 1966. Os termos em itálico são do
texto original. Hobbes compôs esse texto provavelmente em 1666, por ocasião da
discussão de uma lei contra o ateísmo na Câmara dos Comuns, e o mesmo foi publicado em 1680 (Cf. Arrigo Pacchi, Thomas Hobbes Scritti Teologici, Milano,
Franco Angeli, 1988, p. 36).
[9] Idem. Os termos em itálico são do texto original.
Porém, se havia o cuidado com a preservação do ensino apostólico e do bom trato
com os discordantes, as comunidades eram orientadas a evitá-los, como diz
Paulo: “Não vos associeis com alguém que, dizendo-se irmão, for impuro, ou
avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador; com esse tal,
nem ainda comais”. (I Co 5.11).
[10] Suma Teológica, II-IIae, Primeira
Objeção, in: http://hjg.com.ar/sumat/c/c11.html:
09/07/12.
[11]
Suma Teológica, II-IIae, Solução, in:
http://hjg.com.ar/sumat/c/c11.html:
09/07/12.
[12]
Suma Teológica, idem.
[14]
Idem.
[15]
Idem, p. 354.
[19] Do Cidadão, op. cit., p. 22
[20] Hobbes, Behemoth. Paris: Plon, 1989, p. 61.
[21] Idem,
p. 329.
[22] Idem,
p. 338.
[23] Idem,
p. 59
[24]
Leviatã, op. cit., Cap. XLIV, p. 354
[25] Leviatã,
op. cit., Cap. XV, p. 88.
[26] Leviatã, op. cit., p. 103.
[27]
Lc 6.31
[28] Do Cidadão, op. cit., p. 64.
[29] Idem.
[30]
Leviatã, op. cit. Cap. XXIII, p. 147.
[31]
Idem, Cap. XLII p. 318-319.
[32] Cf. Leviatã,
Cap. XLII, p. 307: “Podemos verificar nos escritos dos padres que viveram na época anterior à aceitação da religião
cristã, e sua autorização pelo Imperador Constantino...”.
[33]
Idem, p.324.
[34]
Idem, Cap. XLII, p. 317.
[35]
Idem, ibid.
[36]
Idem, p. 335
[37]
Idem, p.336
[38] Idem. É
após essa argumentação sobre o caráter da soberania civil que ele afirmará,
então, como já citamos, que “não há qualquer juiz da heresia entre os súditos a
não ser seu próprio soberano civil (Leviatã,
op. cit., p. 338).
[39] Idem,
Cap. XXIX, p. 196. A parte em itálico, no esforço de Hobbes de convencer o
leitor da Bíblia, encontra-se assim no Evangelho: “Se um reino estiver
dividido contra si mesmo, tal reino não pode subsistir” (Mc 3.24).
[40] Leviatã, op. cit., Cap. XLV, p. 381.
[41] Idem,
Cap. XXXIII, p. 231-232
[42]
Idem, Cap. XXXIII, p 232
[43]
B. Russell. História do Pensamento
Ocidental. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p. 276.
[44] S. Latourette, Historia del Cristianismo. El Paso, Texas: Casa Bautista de
Publicaciones, 1983, p. 354.
[45]
Idem, ibid.
[46]
Idem, ibid.
[47]
Encyclopaedia Universalis. Peter F.
Baumberger (Ed.). Paris: Universalis, 1989-1990, p. 1180.
[48]
Idem.
[49]
Idem.
[50]
Idem.
[51] B. Russell, op. cit., p. 256-257.
[52]
Idem, p. 228-229.
[53]
Idem, p. 257.
[54]
Frederick Copleston. Historia de la
Filosofia, Vol. III: de Ockham a Suarez, p. 120.
[55] Idem, p. 121.
[56] Idem.
[58] B. Russell, op. cit., p. 226-227.
[59]
François Châtelet et alii . História das
Ideias Políticas, p. 34-35.
[60]
Idem, p. 35.
[61]
Apud Etienne Gilson, A Filosofia na Idade
Média, op. cit., p. 713.
[62]
Idem, p. 716.
[63]
Idem, p. 719.
[64]
Idem, p. 720
[65]
Idem.
[66]
Martin Dreher: Introdução da citada Confissão,
in: http://www.portalsaofrancisco.com.br
(12-07-12).
[67]
Confissão de Augsburgo. Introdução:
M. Dreher: http://www.portalsaofrancisco.com.br
(12-07-2012).
[68]
Idem
[69] Idem. Os textos bíblicos citados na Confissão de Augsburgo para corroborar
essas teses são: "O meu reino não
é deste mundo". (Jo 18,36). "Quem me constituiu juiz ou partidor
entre vós?". (Lc 12,14). "A nossa pátria está nos céus”. ( Fp 3.20 )
e ainda "As armas da nossa milícia não são carnais, e sim, o poder de Deus
para destruir cogitações, etc." (II Co 10.4).